Wednesday, September 12, 2012

I


Parece que as coisas simplesmente SÃO, e pronto. Tudo acontece porque acontece; fim. Hoje, depois de muito batecabeça, eu acredito que é inútil se debruçar sobre o mundo real, como um leitor de romance, procurando sentido.

Talvez exista uma relação perfeitamente coerente entre todas as coisaseu considero a possibilidade; afinal de contas, não sou fanático.


Digamos que o universo obedeça a uma lei fundamental, mais profundamente significativa e entrelaçada do que o espetáculo caótico que se desenrola ante a plateia da nossa consciência e dos nossos sentidos. O problema é que se tal relação existe, nunca foi exposta. As nossas teorias sobre o Todocomo as teorias medievais sobre o movimento dos astrosnão suportam questionamentos insaciáveis; não explicam peremptoriamente o suposto relógio de Deus, ou do acaso. Sabemos demais para aceitar interpretações singelas, e somos singelos demais para chegar à última resposta (considerando que essa resposta exista). De forma que todo esclarecimento, por mais completo que seja, é manco.

Considerando ainda que essa Lei (que esse sentido comum) exista, façamos exercícios mais amplos de credulidadevamos supor que a explicação é óbvia, que está à vista de todos. Se for assim, ninguém ainda foi capaz de apontá-la ou descrevê-la satisfatoriamente. Daí as discussões acaloradas no interior dos templos; por trás das janelas dos edifícios, ônibus e universidades... Passa tudo muito rápido, ou muito distante, e a gente não pode ver a Coisa toda. Tudo é muito confuso, fugaz, amplo, enganoso, lento, oculto, ou complicado.

Se parece necessáriofundamentaladmitir a possibilidade dessa relação, e se é razoável que dediquemos certo empenho em procurar por ela, também parece prudente considerar um método eficiente de vida dentro do qual possamos ignorá-la por completo. Em outras palavras: se a ordem é uma possibilidade, o caos, por sua vez, é evidente. E quem questiona insaciavelmente deve aprender a fazer concessões. Viver sem um sentido que unifique as inumeráveis revoluções dos astros, dos átomos e dos pedestres pela cidade.


Mas conclusões importantes não podem ceder à preguiça. Vamos ainda mais longe: se o universo é governado por uma lógicauma intençãopode ser que nosso desconhecimento dessa intenção e dessa lógica faça parte do plano. Basta dizer que daqui (de nosso ridículo ponto de observação individual, sem qualquer tipo de cálculo) não podemos perceber que a Terra é redonda. Vemos apenas o Sol e as estrelas se movendo. Sombras na Lua. Nuvens. Navios. Evidências. Insinuações. Mosquitos que caminham sugestivamente sobre qualquer fruta que se queira comer. Migalhas. Isso. O que temos são migalhas. Pedaços. Fragmentos aleatórios do que imaginamos ou esperamos fazer sentido num contexto maior.

Algumas coisas se repetem em demasia, enquanto outras não aparecem. Procuramos por qualquer tipo de trilha. Tentamos isolar o que é mais importante. Diz-se que tudo tem uma função e que cada grão de areia faz parte do plano. Depois, durante a investigação, os grãos de areia são descartados. Infinitos fatos pequenos que desprezamos como irrelevantes, ou insignificantes.

Impossível separar o importante do resto, porque simplesmente não existe resto. Se quisermos ter uma ideia do Todo, então Tudo é importante.

Aqui, esbarramos num problema sério. Não podemos considerar Tudo. Não temos ferramentas pra isso. Nem mesmo chegamos a perceber o que é Tudo. Ainda outro dia, um astrofísico sugeria que as partículas subatômicas sequer existiam antes que as tivéssemos observado. E quanto mais fundo penetramos no buraco, descobrimos apenas que este é maior do que se imaginava antes. Brincamos de medir o oceano com uma régua de vinte centímetros. Alguns acreditam-se os arquitetos de meios mais eficientes. Réguas de um metro. Que seja. Ninguém nunca chega lá.

Não faz muita diferença. Albert Einstein, Alfred E. Newman, Umberto Eco, Dona Florinda. Não faz muita diferença. Vistos um pouco de cima, são como grãos de areia sem personalidade. Apenas nomes. Rostos. Pequenas particularidades acidentais. Tão diferentes entre si quanto uma estrela da outra. tentar entender o Universo, enquanto perde seu tempo curto estudando a diferença entre duas estrelas. Tente compreendê-lo sem conhecer essa diferença...


Alguém encontra uma mensagem codificada na Bíblia. Alguém encontra outra mensagem no Moby Dick. Os livros se acumulam nas bibliotecas e ninguém ainda chegou lá. Brincamos com os interruptores enquanto, de fato, gostaríamos de abraçar as estrelas. Braços curtos. Temos que nos virar com isso. Temos que aprender a viver com isso.

Talvez os planetas, ou os átomos, entendam o que está acontecendo. Mas nós gememos atropelados no meio do caminho. Pra falar de mim: desperdicei muito tempo tentando ser coerente. A vida não se desenrola com a estrutura rígida e fácil das frases. Por que feliz? Por que triste? A verdade é que isso não importa. São coisas que vêm e que passam. Como uma gripe. Mistérios além de mim, que eu simplesmente percebo. Que sou obrigado a aceitar. Como o céu. Como as montanhas.

Abra sua janela e uma espiada por aí. Tudo é essencialmente belo. Não importa se você acredita que isso foi feito por um Deus cheio de dedos, ou que é tudo apenas o produto fortuito da mais espantosa chance. Não importa que tipo de sentido você ao mundo enquanto olha para ele. Agora, por exemplo, eu não consigo dormir e minha janela está aberta. A despeito das minhas aflições e dores e cigarros fumados, um dia lindo se levantando fora. Se você conseguir esquecer por um instante que é uma pessoa cheia de pequenas preocupações e mesquinharias, se observar o mundo através de um olhar atento e desinteressado, inocente e distraído, vai perceber que tudo é colorido e cheio de formas improváveis. Mas o problema é que não pensamos com os olhos. Também um cérebro aqui dentro e ele me diz que aquilo é mau e que aquilo é extravagante. A nossa vontade de rotular estraga o clima de festa. Também um estômago, e dois rins. Um fígado. Precisamos comer e beber e nos mover e falar. Eu preciso dormir, mas não quero. Precisamos sentir e querer e vamos todos morrer. Precisamos nos proteger, porque ficamos com medo. Nossa própria natureza humana nos arrasta pra dentro do buraco, mas não precisa ser assim.

Todos gostariam de dizer com convicção sincera e argumentos sólidos que suas vidas têm sentido. Uma finalidade. Uma intenção. Mas isso não é verdade. Encontrar um sentido nas coisas é simplesmente um exercício de ignorar outros aspectos que não fazem parte daquele sentido escolhido. O dia foi perfeito, ignore os grãos de areia. A noite foi terrível, ignore as estrelas.

Você pode traçar uma linha reta do princípio ao fim, mas o caminho não é percorrido em linha reta. Cada gesto e cada passo estão impregnados de infinito. Insistimos em interpretar cada coisa como se ela existisse isolada do resto. Continuamos protegendo nossa convicção de que as coisas são exatamente como nós as percebemos. Como pensamos sobre elas. Que existe qualquer tipo de segurança. Isso se explica, provavelmente, porque passamos a maior parte do tempo concentrados unicamente no que acontece à nossa volta. Porra, sequer à nossa volta examinamos. Passamos a maior parte do dia dentro de nossas próprias cabeças. disseram por aí: enxergamos o que olhamos, e olhamos para o que tínhamos visto.

Aquilo parece importante por alguns instantes, e de repente não é mais. Algo surge como o centro do mundo, num determinado momento. Como nosso umbigo. De repente, a importância desaparece, ou se desloca. De repente, estaremos todos mortos.

Não existe uma sequência lógica, numa observação desinteressada dos fatos. A busca de um sentido é apenas uma expressão da nossa vontade egocêntrica de reorganizar o mundo à nossa própria maneira. Dentro de uma lógica que NÓS inventamos. A crença de que alguma coisa (nossa imagem e semelhança) está mexendo os pauzinhos. Mas os pauzinhos estão soltos e se mexem dentro da sua própria lógica, que parece alheia e insensível aos destinos e aspirações humanas. As coisas simplesmente SÃO; não têm lógica, ou finalidade intrínseca.


Às vezes, a vida é como a prova de uma professora chata do primário. Você não sabe a resposta da segunda questãoentão chuta e continua lendo... No enunciado da quinta pergunta, você encontra a solução da segunda, mas, ei, você não pode rasurar. O jeito é entregar a prova com firmeza, perturbado pela consciência de ter feito merda em algum lugar. Transtornado pelo desejo intenso e inútil de voltar atrás, com um conhecimento que adquiriu depois da oportunidade, com o qual poderia consertar, aliviado, os errosmas regras são regras, e você tomou no cu. E o tempo é o tempo. E a vida é a vida.

É tudo assim mesmo: acelerado, estronho, dnesoexco. O resto é conversa fiada. Resultado dessa coisa que nos preenche a alma e ocupa todos os espaços que eu gostaria cheios de certa substância menos falsa. Essa coisa que sai de mim em forma de letrinhas, palavras, frases e pensamentos confusos. Signos que se batem e se cruzam como organismos vivos, entre eventualidades elementares de uma seleção natural. Tão cheio de ideias e ainda me sinto vazio. Queria estar cheio de outras coisasmas o espaço acabou e as letrinhas não saem quando fico de cabeça pra baixo.

Fazer o quê? Você, como eu, pode estar cansado da complexidade do mundo, e de todos os murros, cercas e paredes às portas do corpo e da mente. Diz-se que o tempo é o maior de todos os mestres. Um mestre que, tragicamente, acaba por matar todos os seus discípulos. (Isso será repetido, porque a repetição faz parte da realidade.) Proponho, em nossa defesa, um movimento rebelde. Vamos matar o tempo. Eu não sei da sua vida, então vou falar da minha. Foi assim: eu nasci, e então me deram um tapa na bunda. (Na verdade, não lembro dessa parte, mas acredito que foi assim). Blá, blá, blá...

Então fui numa festa, onde tive oportunidade de conversar com Linda. Às vezes nos víamos de longe, na universidade. Era a primeira vez que conversávamos e, porra, como ela me encantava... Que homem até hoje teve uma musa que não fosse a mais linda, a mais amável e a mais desejável? Linda caiu estrondosa como um raio em minha vida. E naquele dia eu certamente poderia ter escrito os versos mais apaixonados e ansiosos, mas este livro começa no fim. Uma semente de realidade que brota sobre o túmulo do amor.


Eu, que sempre fui um paciente apreciador do flerte, insistia como um piolho de micareta. Ela não queria ficar comigo. Havia um namoradodistante, mas havia. Eu teimava, eu teimava... E hoje me parece que eu persistia com a consciência, no fundo, de que algo daria errado. Agora, quando preciso mas não quero dormir, sinto que cada um conhece a sua própria sina. É um engano; uma tendência à pregnância. A busca de um sentido cujas contradições ficam evidentes na experiência imediata, mas que nossa menteviciada em completar espaços vazios pra formar figuras simplesinsiste em projetar no passado.

Eu não sabia de porra nenhuma. O mundo é imprevisível. É minha cabeça idiota que fica procurando desculpas para se gabar com “Eu já sabia!”, ou “Entendi!”. Está claro pra mim que o sentido atual das experiências passadas vai se transformando numa farsa. Observo a criação involuntária de uma história fraudulenta com a qual minha consciência pretende encobrir o que de fato aconteceu. Por isso escrevo. Estou sendo atravessado por uma dor extrema e significativa, que em alguns anos (provavelmente) será transformada (involuntariamente) numa explicação simples e fantasiosa. Uma estrada tortuosa que será lembrada como linha reta entre A e B. Eu quero saber a verdade. Preciso começar de A, antes que minha mente conheça B. Fotografar meu estado mental durante o caminho e comparar a trajetória de fato com as conclusões tardias.

Eu insistia e ela dizia não. Então a festa acabou. Ela recusou todos os beijos, mas aceitou a carona. Estamos parados na frente de sua casa. Depois de uma última tentativa, do últimoNão posso, eu espero que ela desça do carro. Ela hesita, antes de sair. O corpo dela volta. Um abraço. Eu me derramo, por um segundo. Então afrouxo os braços e vou retirando o rosto. Ela me beija.


Naquele primeiro dia, ficamos um longo tempo ali, dentro do carro. Depois disso, foram outras tantas eternidades; dentro do carro, nos banquinhos das praças, na frente do templo ecumênico universitário...

Permite um conselho? A beleza existe, cara. A beleza realmente existe. Sei que isso não é muito um conselho, mas é uma coisa que precisava ser dita. Era tudo maravilhoso e eu acordava abraçando o travesseiro. E era tão bom compartilhar essas maravilhas com um anjo e eu dizia que ela transformava tudo que chegava em beleza e tudo que saía em satisfação. E era tanta ternura e um sentimento tão bom para saborear sempre que precisasse delea mera consciência de que ela estava fora, em algum lugar... Cheguei a acreditar que eu era uma pessoa verdadeira e profundamente boa. Dessas que não são feitas de carne. Dessas que não existem.

Mas o tempo passa e chega uma hora em que as pessoas precisam tomar decisões. As pessoas precisam escolher entre uma coisa e outra e, eu, por aqui, estou acostumado a viver com um punhado de vermes dentro da boca. Não foi a primeira vez que chego em segundo lugar.